As características do contexto de intervenção e o modo como o
projecto lhes responde
A
casa Drº Marques Guedes foi projectada
pelos Arquitectos Alexandre Alves Costa e Camilo Cortesão, no entanto, sempre
foi um projecto sempre “vigiado” pelo Arquitecto Sérgio Fernandez. Esta
habitação foi desenvolvida entre 1972 e 1974, sendo que o último foi o ano de
conclusão da obra. Contudo, este projecto “cresceu” no escritório do Arq. de
Sérgio Fernandez, pois fora resultado de uma encomenda feita a um amigo
conhecido de Fernandez e que por indicação do mesmo foi solicitado então a Sérgio
Fernandez. Deste modo, Fernandez trabalha com Alexandre Alves e Camilo
Cortesão, dando assim inicio à famosa “Casa de Caminha”. Todavia, vemos que a
autoria desta obra é dada a Alexandre e Camilo e não a Sérgio Fernandez, esta
deve-se ao facto de o projecto ter sido maioritariamente pelos restantes
intervenientes.
“…quem de facto trabalhou mais
neste projecto foi o Camilo Cortesão…foi o Alexandre e o Camilo Cortesão. De
qualquer maneira fiquei ligado ao projecto, e estou ligado ao projecto, e à
casa e aos senhores…e portanto…digamos, até que fui eu que assinei o projecto,
como é natural, como o escritório era meu e a encomenda foi-me feita a mim.
Agora, de facto, quem trabalhou mais foram eles. Por isso é que normalmente se
diz ‘Alexandre Alves Costa e Camilo Cortesão’…é verdade…é 90% verdade, mas
pronto, nós aqui não fazemos nada com grande distinção com isso, há muitas
coisas que calha mais a um, calha mais a outro; neste caso realmente era mais a
eles que a mim.”[1]
No
que respeita à casa de férias em Caminha em si, sabemos que num primeiro
contacto entre clientes e os devidos arquitectos, estes não tinham em mente o
projecto que hoje se afirma no terreno em questão.
Deste
modo, e após várias discussões com os respectivos clientes, chegaram a um
projecto de habitação que ligava algumas vertentes do movimento moderno com uma
grande fracção e sequência do mesmo, o brutalismo. Portanto, nesta linha de
pensamento, todos os materiais foram utilizados com um reflexo de sua expressão
e “agressão”.
“Pronto,
tínhamos portanto três casas que eram uma espécie de referência, e que os
senhores passaram a conhecer também, que era a casa do Siza do Alexandre Alves
Costa, que era a casa da Gateira e que era a minha própria casa. Qualquer
delas, na casa do Alexandre a estrutura de madeira, aliás a do Siza também a
minha já não era, telhados..etc., e nós propusemos-lhes esta coisa, que era uma
coisa muito mais ligada, se quisermos ao movimento moderno e a uma certa
fracção, ou sequência do movimento moderno que era o brutalismo, que era a
questão de usar os materiais na sua expressão e portanto mais agressiva, no bom
sentido. E os senhores acharam isto bestial e engrenaram nisto.”[2]
“Na
Casa Marques Guedes, a forma moderna sobrepõe-se à inspiração vernacular, mesmo
se a relação com o sítio e com a paisagem é cuidadosa. A utilização dos
materiais e o uso da geometria remetem para modelos que não são necessariamente
domésticos. Apesar da implantação criteriosa e do espaço ameno, a curva de
vidro, o betão aparente, e o pilar solto, remetem para uma expressão brutalista
em escala demasiado sensível”[3]
No
entanto, todo o projecto é quase como um surgir do terreno, sendo que este vive
bastante da envolvente próxima, aproveitando-a para uma espécie de “disfarce”.
“Quase camuflada pela vegetação e
topografia, escala contida e materiais (…)”[4]
Contudo,
e como já dito, a casa apresenta uma
expressão bastante “diluída” e “rude” no seu exterior e ao mesmo tempo, e por
outro lado observamos no seu interior uma expressão abundantemente “suave”,
sendo que são todos os seus desníveis e elementos delicados que modelam todo o
seu espaço “íntimo”.
“A divisão do espaço por patamares e
muretes remete ainda para a tradição da arquitectura moderna; são desníveis e
elementos subtis que modelam o espaço, que aspira a uma totalidade”[5]
Porém,
todas estes pormenores e delicadezas são conseguidos e revistos ao longo de
todo o processo de construção da casa, e claro com a sucessão de projectos base
que iam sendo modificados. De facto, neste período era possível intervir no
projecto no momento em que este ainda se estava a construir daí o Arq. Sérgio
Fernandez referir a expressão “arquitectura de bengala”, pois era possível
fazer todos os ajustes necessários e dados como convenientes em prol do
projecto em mãos.
“Esta
casa foi feita por um senhor que ainda existe, que era um empreiteiro e é, um
pequeno, pequeníssimo empreiteiro, um empreiteiro um bocado à força porque o
senhor era fundamentalmente um construtor de iates, portanto um homem que
dominava as carpintarias, absolutamente de uma maneira impecável…De maneira que
quando os iates não começaram a não haver virou-se um pouco para a construção
civil, e assim fez várias casas importantes…Fez a casa do Alexandre Alves
Costa, que é do Siza; depois fez a casa da Gateira, também do Siza, depois fez
a minha e fez esta também… Bom, isto tudo criava, quer dizer criou um diálogo
muito rico e ensinava-nos imensa coisa, visto que as técnicas que dominava das
carpintarias e maçonarias era absolutamente uma coisa fantástica, pois sempre
lidou com artistas. Ainda me lembro que o Siza, aliás aqui à dois anos fizemos
uma homenagem a esse senhor, e esse senhor também lá estava e o Siza lá
explicou o que nós tínhamos aprendido com ele. Pronto…e isto tinha na altura,
tínhamos a possibilidade, portanto de ter um diálogo muito intenso com o
construtor, por outro lado a Câmara de Caminha, nessa altura era uma Câmara que
nos considerava a nós; agora já não é assim; mas ter ali uns arquitectos ali a
trabalhar era uma vantagem, agora já não é, antes pelo contrário é um
inconveniente porque chamamos a atenção para várias coisas…mas na altura era
uma vantagem, eramos muito bem tratados tínhamos muita liberdade em modificar
coisas. Realmente, era possível durante a obra, uma coisa que o Siza sempre fez
toda a vida e que não é enfim descabido de todo, era fazer alterações; agora
torna-se impossível. Agora entrega-se um projecto e é uma desgraça. Portanto,
isso foi feito muito nesse período, dai ser considerado uma obra de artesanato,
porque havia possibilidade de ir vendo o resultado e etc. Nós chamávamos, a
arquitectura de bengala, chegue a parede mais para ali. Não direi que foi tanto
assim, porque tinha um projecto base, não tem mais que um projecto base, tem os
pormenores todos e etc. Mas era possível realmente corrigir coisas assim.”[6]
Perante
tal, verificamos que todo o trabalho dedicado ao projecto, tanto em atelier
como em construção, faz desta casa uma real obra de artesanato como Alexandre
menciona e cita.
“…é uma obra de artesanato. Artesanato
com certeza na produção do projecto, como todas as outras. Mas artesanato
também na produção da obra. À época da construção desta casa estarão defeitos,
os equívocos nascidos de alguma leitura dos racionalistas assimilando
arquitectura moderna a modernas tecnologias. Pelo contrário a ideia impõe-se de
que à volta dos pequenos processos de construção das pequenas coisas, a
experimentação pode saltar da prancheta para prosseguir na oficina e na obra.
No ritmo próprio. Em que se apreende. Em que se projecta o móvel, o candeeiro
ou a ferragem. Em que calmamente se altera ou se corrige. Em que o erro de
interpretação de um desenho pode ser momento de colocar outras questões. Oposta
a uma qualquer ordem monumental, nesta casa de praia destrói-se
sistematicamente qualquer resíduo de grandiloquência clássica, estremando
posições até a reduzir a um decomposto e sincero envólucro de paredes de um
espaço rico em sugestões vivenciais de relação”[7] e [8]
Assim,
esta casa cumpre o termo de funcionalista, mas no sentido de “alegria
experimental e não de gesto de funcionário”[9].
Desta forma, o projecto da habitação esta efectivamente pensado e destinado à
nossa medida, “mínimo mas comunicante, aberto mas criando a noção de abrigo”[10].
A lógica funcional e espacial da planta que
melhor representa o projecto
[11]
Como
em tudo que se contornava em torno deste projecto, o programa (planta) também
foi alvo de delicadeza e simplicidade, desta forma este também se revelou muito
simples.
Quanto
a sua localização, o projecto situa-se numa encosta, como resultado dessa
topografia a habitação é orientada a norte. Visto que a sul a proposta não iria
beneficiar de paisagem. Assim, a decisão foi feita através da topografia
apresentada, e do melhor partido que o projecto poderia tirar desta. Visto ser
uma casa de habitação relativamente temporária e preferencialmente no verão a
sua exposição solar não fica prejudicada.
"Quase
camuflada pela vegetação e topografia, escala contida e materiais - entramos à
cota alta numa espécie de cabana em angulo recto de pedra e betão, que no
interior revela uma «paisagem» modernista."[12]
Como
já foi referido anteriormente a casa tem um programa muito simples e funcional,
dando assim origem a um ambiente muito confortável. O seu programa é composto
por uma sala em comum com a cozinha e uma pequena galeria. Esta com um nível
elevado de acesso através de uns pequenos degraus. Três quarto, sendo o seu
desnível em comum pontuado entre eles por dois degraus. Duas casas de banho,
uma comum enquanto a outra de serviço a um dos quartos (donos). Uma lavandaria
e uma despensa. Quanto ao acabamento de interior as paredes e tecto eram
pintadas com um rosa pálido e o pavimento em cerâmica.
"A
casa tinha um programa muito simples, uma casa de férias, são três quartos, uma
casa-de-banho comum, uma casa-de-banho mais ligada a um quarto (o quarto dos
senhores portanto) e depois eles queriam; portanto o senhor é médico e tem uma
colecção de discos, tinha a mania da música, quer dizer a saudável mania da
música, da música boa, portanto coleccionada discos e não só; tinha
aparelhagens absolutamente fantásticas, digo tinham por acho que ele já não tem
tanto isso lá, mas…E portanto queria ter um local de trabalho e que pudesse estar
a ter uma continuidade de espaço, com algumas marcações de espaço, mas que
tivesse toda a casa uma continuidade de vivência.” [13]
"No
interior, o mobiliário modela o espaço como num apartamento da Unité, espaço
medido, ajustado pela bancada da cozinha, pela mesa e cadeiras, pelo
armário-murete e coluna-chaminé. A cozinha é um armário aberto, os
electrodomésticos significam funcionalidade e conforto, a sala segue-se no open
space, o tecto acompanha o declive do terreno na direcção da paisagem. As famosas
"alcovas" são ainda um armário para dormir, o mobiliário dita o
espaço."[14]
"Acede-se
á Casa Marques Guedes a uma cota alta, dai entrando-se na sala que está num
patamar inferior, em open space com a cozinha. A divisão do espaço por
patamares e muretes remete ainda para a tradição da arquitectura moderna; são
desníveis e elementos subtis que modelam o espaço, que aspira a uma totalidade.
A
integridade formal da casa é conseguida pelo desenho de todos os elementos
arquitectónicos - mobiliário, iluminação, caixilharia -, dada a escassez de
opções, na época, existentes na industria de construção civil. Este facto dá à
Casa Marques Guedes um caracter experimental.
Mesmo
se a organização do espaço é feita com recurso à tradição moderna, uma certa
experimentação e desagregação exterior remete já para o terreno da
dúvida."[15]
Os aspectos do projecto mais próximos dos
modelos canónicos do movimento moderno;
Os aspectos do projecto que mais se
distanciam dos modelos canónicos do movimento moderno
“A
Casa de Caminha é a última casa moderna construída em Portugal.”[16]
“Quase
camuflada pela vegetação e topografia, escala contida e materiais – entramos à
cota alta numa espécie de cabana em ângulo recto de pedra e betão, que no
interior revela uma “paisagem” modernista.”[17]
Casa
Marques Guedes revê-se claramente no movimento Moderno. Além de se encontrar
ligada a uma pendente do mesmo, o brutalismo, sendo detentora de um tratamento
informal e rudimentar dos materiais no exterior, o projecto revela diversas
características do funcionalismo, sendo “funcionalismo” aqui utilizado como “alegria experimental” e não gesto de
funcionário. De certa forma, “o mobiliário modela o espaço”, a funcionalidade e
o conforto “modelam” a habitação, muito à imagem de um apartamento Unité, sem esquecer do emprego do open space, o que confere ao interior um
semelhante consideravelmente modernista.
“O
espaço parece destinado à nossa medida, mínimo mas comunicante, aberto mas
criando a noção de abrigo. Talvez seja o fantasma de Modulor, que Sérgio usava
no atelier de Viana de Lima, a funcionar. Talvez o maior legado de Le Corbusier
seja afinal este, que aqui podemos pressentir: uma precisão espacial que
emociona, a pequena escala correcta; a medida do corpo humano revertida na
medida da Casa que o Cabanon (1951) exemplifica de modo extremo.”[18]
Em
certa medida que a Casa de Marques Guedes segue o percurso de Le Corbusier:
desde “a plasticidade cubista dos anos vinte”, no que remete ao interior da
habitação, ao “jogo cru dos anos cinquenta”, no exterior, resolvendo alguns dos
mais marcantes problemas do Modernismo: “os problemas da falta de domesticidade
e de “decoro” da arquitectura”.
“A
arquitectura portuguesa não volta a ter este convencimento ou precisão ou
candura.”[19]
[1] Arq. Sérgio Fernandez (Mariana Soares e Paula Barros). Porto:27/04/2012
[2] Arq. Sérgio Fernandez
(Mariana Soares e Paula Barros). Porto:27/04/2012
[3] FERREIRA, Jorge
Manuel Fernandes Figueira (2009). A Periferia Perfeita: Pós-Modernidade na
Arquitectura Portuguesa, Anoa 60-Anos 80. Dissertação de Doutoramento em Arquitectura. Departamento de Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia
da Universidade de Coimbra. Volume I. p.358
[4] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.115
[5] FERREIRA, Jorge
Manuel Fernandes Figueira (2009). A Periferia Perfeita: Pós-Modernidade na
Arquitectura Portuguesa, Anoa 60-Anos 80. Dissertação de Doutoramento em Arquitectura. Departamento de Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia
da Universidade de Coimbra. Volume I. p.358
[6] Arq. Sérgio Fernandez
(Mariana Soares e Paula Barros). Porto:27/04/2012
[7] FERNANDEZ,
Sérgio. Percurso, Arquitectura Portuguesa
1930-1974, 2ªed. Porto: FAUP, 1988, pp. 190-191
[8] COSTA, Alexandre
Alves, Dissertação expressamente
elaborada para o concurso de habilitação para obtenção de título de
Professor…memórias do cárcere desastres de Sofia ou memórias de um burro.
Porto : Edições do curso de Arquitectura da ESBAP, 1982 (1ºedição do
autor,1980), pp. 97-98
[9] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.115
[10] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.115
[11] Planta Casa Dr.
Marques Guedes, Abril 1972. Projecto Original. (fornecida por Arq. Sérgio
Fernandez, em 27.04.2012)
[12] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.115
[13]Arq. Sérgio
Fernandez (Mariana Soares e Paula Barros). Porto:27/04/2012
[14] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.115
[15] FERREIRA, Jorge
Manuel Fernandes Figueira (2009). A Periferia Perfeita: Pós-Modernidade na
Arquitectura Portuguesa, Anoa 60-Anos 80. Dissertação de Doutoramento em Arquitectura. Departamento de Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia
da Universidade de Coimbra. Volume I. pp.358-359
[16] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.115
[17] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.115
[18] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.115
[19] FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul. p.117
Bibliografia:
COSTA,
Alexandre Alves, Dissertação
expressamente elaborada para o concurso de habilitação para obtenção de título
de Professor…memórias do cárcere desastres de Sofia ou memórias de um burro.
Porto : Edições do curso de Arquitectura da ESBAP, 1982 (1ºedição do
autor,1980)
FERNANDEZ,
Sérgio. Percurso, Arquitectura Portuguesa
1930-1974, 2ªed. Porto: FAUP, 1988
FERREIRA, Jorge Manuel
Fernandes Figueira (2009). A Periferia Perfeita: Pós-Modernidade na
Arquitectura Portuguesa, Anoa 60-Anos 80. Dissertação de Doutoramento em Arquitectura. Departamento de Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia
da Universidade de Coimbra. Volume I
FIGUEIRA, Jorge. O
Arquitecto Azul.
PORTAS,
Nuno; MENDES, Manuel, “A.Alves Costa, C.
Cortesão, Maison de vacances, Caminha-Portela, 1973-1974”, in Portugal
Architecture 1965-1990, Paris: Editions du Moniteur, 1992 [Milan:Electa,1991]
Entrevista
a Arq. Sérgio Fernandez (por Mariana Soares e Paula Barros) em 27.04.12
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